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"O narcisismo das pequenas diferenças"


Livro

Do pensamento freudiano, o narcisismo das pequenas diferenças está relacionado não só com o conceito de narcisismo - como se forma e como se mantém uma unidade (do ‘eu’ e da ‘massa’) – mas, também, com o conceito de pulsão de morte, uma vez que a unidade só se forma e se mantém quando há um outro a quem se destina essa mortífera pulsão. Coesão e satisfação da destrutividade formam os dois pólos da noção.

«Num dia gelado de Inverno, os membros da sociedade de porcos-espinhos juntaram-se para obter calor e não morrer de frio. Mas logo sentiram os espinhos dos outros e tiveram de se distanciar. Quando a necessidade de se aquecerem os fez voltarem a juntar-se, repetiu-se aquele segundo mal, e assim se viram levados e trazidos entre ambas as desgraças, até que encontraram um distanciamento moderado que lhes permitia passar o melhor possível.»

Parábola publicada originalmente em «Parerga y paralipómena II», de Schopenhauer que adicionou o comentário:

«Assim a necessidade de companhia, nascida do vazio e da monotonia do próprio interior, impulsiona os homens a unirem-se; mas as suas muitas qualidades repugnantes e defeitos insuportáveis conduzem-nos a separarem-se uns dos outros. A distância intermediária que no final encontram, e na qual é possível que se mantenham juntos, é a cortesia e os bons costumes. Na Inglaterra, àqueles que não se mantêm a essa distância grita-se: keep your distance! - Devido a ela, a necessidade de aquecer-se mutuamente não se satisfaz por completo, em compensação não se sente o espetar dos espinhos. - Não obstante, aquele que possui muito calor interior próprio fará melhor em se manter longe da sociedade para não causar nem sofrer nenhuma moléstia. (p. 665)»

Na parábola, o frio e o espinho são dois impossíveis opostos. O frio aparece como impossibilidade de sobreviver sozinho (unir-se para não morrer de frio), ao passo que o espinho representa a impossibilidade de viver junto (separar-se para não nos furarmos uns aos outros). Schopenhauer chama os espinhos de segundo mal; o primeiro é o frio, como anunciador da morte que nos impele em direcção aos outros. E o homem, porco-espinho que é, vive entre essas duas impossibilidades: ou só e com frio, ou com o outro e o seu espinho.


Freud usou a parábola para falar do modo como os seres humanos em geral se comportam afectivamente entre si e, principalmente, para descrever essa impossibilidade de uma aproximação muito íntima do outro:

«Conforme o testemunho da psicanálise, quase toda a relação sentimental íntima e prolongada entre duas pessoas - matrimónio, amizade, o vínculo entre pais e filhos - contém um sedimento de afectos de aversão e hostilidade, que apenas devido ao recalque não é percebido. Isso é mais transparente nas querelas entre sócios de uma firma, por exemplo, ou nas queixas de um subordinado contra o superior.»

Segundo Freud, a única relação isenta de afectos de aversão e hostilidade seria a da mãe com o seu filho. Todas as demais teriam espinhos. Esta aversão, hostilidade e intolerância - Freud nomeia de diversas formas - apega-se aos pormenores da diferenciação para se expressar. Apega-se às pequenas diferenças.


No entanto, há momentos em que essa mútua aversão entre os homens, ou essa hostilidade primária, é suspensa.

«(...) toda essa intolerância desaparece, temporariamente ou de maneira duradoura, por meio da formação da massa e dentro da massa. Enquanto perdura a formação de massa, ou até onde se estende, os indivíduos conduzem-se como se fossem homogéneos, suportam a especificidade do outro, igualam-se a ele e não sentem repulsa por ele.»

A ligação entre os membros, no interior de uma massa, permite suportar a especificidade do outro. O narcisismo das pequenas diferenças, que distinguiria os integrantes ao instaurar uma mútua hostilidade, fica suspenso no interior da massa.


O narcisismo das pequenas diferenças (na sua primeira versão, «taboo of personal isolation») mostra, inclusive, uma oposição à formação da massa, pois essa exige "ligações libidinais entre os seus membros" e a recusa de qualquer pormenor que venha a diferenciá-los. Os integrantes de uma massa supõem-se todos irmãos indiferenciados, como se tivessem a mesma forma, uni-form-izados.


O narcisismo das pequenas diferenças não é um fenómeno exclusivo de uma massa, ainda que Freud o tenha privilegiado. Na massa aparece sem contenção e, inclusive, desaparece no seu interior, entre os seus integrantes, para retornar - com intensidade - na oposição que se estabelece na formação de grupos, gangues, partidos, facções etc. E, da mesma forma como antes o narcisismo das pequenas diferenças era uma garantia de uma unidade do ‘Eu’, agora passa a ser a garantia de uma coesão e singularidade de uma massa. Desaparecem os espinhos interpessoais, para retornarem mais pontiagudos nas relações intergrupais.


Se em 1921, Freud definia uma massa como um conjunto de indivíduos que colocaram "um único objecto no lugar do seu ideal de Eu e, em consequência, identificaram-se uns com os outros no seu Eu"; em 1930, a união dos indivíduos entre si passa a ser um bom motivo para o exercício da destrutividade. "Não é de menosprezar a vantagem que tem um agrupamento cultural menor, de permitir à pulsão um escape, através da hostilização dos que não lhe pertencem". De tal forma que uma massa também poderia formar-se “colocando um único e mesmo objecto como destino da pulsão de morte”. Unem-se e identificam-se entre si, pois há outro a quem se pode hostilizar.


Poder-se-ia questionar se a massa necessita de um líder, ou se ele pode ser substituído por um objecto a quem se destina a pulsão de morte.


Freud escreve:

"O líder ou a ideia condutora poderia tornar-se negativo, por assim dizer; o ódio a uma pessoa ou instituição determinada poderia ter efeito unificador e provocar ligações afectivas semelhantes à dependência positiva".
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